Dia Internacional das Crianças Desaparecidas
A todas as que não voltaram Cheiro de Vida sem Rosto 3 da madrugada, 2 de janeiro de 2009 O dia tinha sido chuvoso e frio, pois estávamos em pleno inverno. Dormia profundamente embrulhada em sonhos doces e felizes quando de repente acordei com um estrondo fora do normal. A casa tinha vidros duplos e não havia ruído quase nenhum que passasse de fora para dentro. O meu filho “Ravi” dorme sempre no andar de cima. Desde muito novo que se habituou a dormir sozinho. Sempre independente e corajoso. Assustada ponho a roupa para o lado e levanto-me apressadamente. Calço uma meias, que por habito tenho sempre ao fundo da cama. Lanço a mão à maçaneta da porta do quarto e antes de a abrir faço um minuto de silêncio para me concentrar e apurar a audição. Nada. Não escuto nada. Lembro-me de ter sonhado com o “Ravi”. Estávamos no Jardim da estrela a caminhar em direção aos baloiços. Fazíamo-lo regularmente. Ficávamos por lá de 2 a 3 horas por dia. Havia sempre uma lancheira com um farto lanche e não podia faltar o gelado já para o final da tarde. Eram dias de grande felicidade. Ah! A maçaneta. Rodo-a, e já no corredor, procuro no escuro o interruptor da luz. Que raio, são sempre 2 a 3 apalpadelas até o encontrar. Nunca dou com ele à primeira. Não há luz. A casa está completamente às escuras e não tenho outro meio se não recorrer a uma vela que escondo sempre atrás do espelho grande do corredor. Cuidadosamente dou os meus primeiros passos para a madeira não ranger e não me denunciar, caso haja alguém em casa. Paro junto à escada que sobe para o quarto do meu filho, mas de repente chega-me um frio às pernas que não é normal lá em casa. Para além de ser uma casa herdada dos meus avós e já com mais de cem anos, encontra-se bem calafetada e pronta para enfrentar os invernos mais rigorosos. Desço metade da escadaria e reparo num brilho anormal nos últimos degraus. Só podia querer dizer uma coisa…a porta da rua encontrava-se aberta. Sinto um imenso arrepio pelo corpo todo. Quero pensar, mas o momento interrompe-me qualquer tentativa para o fazer. As lágrimas lavam-me a cara e não me deixam ver de forma clara. Tenho de continuar a procurar força para derrotar o medo. Apresso a descida do último lance de escada. Pauso mais uma vez para tentar captar qualquer interferência. Qualquer barulho. Mas nada. Há um silêncio que me incomoda. Entretanto no jardim da Estrela Está a ficar fresco e começo a chamar o meu filho para irmos embora. Até ao final do dia ainda me espera muito trabalho. O banho do meu filho, o jantar e a preparação das refeições para o dia seguinte. Vivemos sozinhos há cerca de 2 anos. O meu marido faleceu e desde então que somos o coração um do outro. Com 6 anos, é a minha única fonte de ajuda em casa. Regressamos então a casa, mas há um olhar estranho do outro lado da estrada. Enquanto esperamos que o semáforo mude para verde há alguém que nos observa de uma forma intensa. Já na passadeira cruzo-me com quem me olhava e sinto um arrepio à sua passagem por nós. Tive uma sensação estranha. Um sinal de medo incomum, que apenas acabou com o meu filho a gritar, porque estava a agarrar-lhe a mão com demasiada força, que nem reparei que o magoara. Voltemos à noite Chego à porta de casa e espreito para a rua. Estava deserta. Fria e escura. Foi a primeira vez que senti o medo em estado puro. Entro e fecho a porta. Tinha a certeza que a tinha trancada. Se há coisas que confirmo é a porta da rua. As lágrimas não dão tréguas. Caem desalmadamente. Tenho um mau pressentimento, que esforço-me por escondê-lo de mim. Cruzo os braços para me aquecer e para não pensar no pior. Ao fundo da escadaria olho para cima e desato a correr até ao corredor do 2º piso. Ao fundo uma porta aberta. O quarto do “Ravi”. Receio, mas avanço. Deixo um lastro de lágrimas para que uma força Maior me ajude. Me siga e guie. Sinto-me sem forças e sem pensar. Existe apenas um vazio em mim. Horas depois, já com a luz do dia a bater-me no rosto, acordo com o chilrear de pássaros, que nidificam todos os anos na grande árvore do jardim. Estou mais uma vez sentada no meio do quarto do meu filho. Vazio e sem qualquer peça de mobiliário. Olho em volta e não vejo a vida. Estou sem alma e cada dia que passa é uma verdadeira batalha contra tudo e todos. A angústia engoliu-me a esperança. Sufoca-me dia a dia. Provavelmente ter-me-ei esquecido novamente de fechar a porta da rua, resultado da falta de medicação. Após 10 anos de consultas em psicólogos comecei a desistir. Não tenho mais forças para continuar e neste momento estou entregue apenas a mim. O “Ravi” desapareceu há 10 anos. As autoridades continuam a incessante busca, mas até agora sem muitas pistas. Tenho quase a certeza que foi a mesma pessoa que me deu o maior e mais estranho arrepio da minha vida. Se o meu filho for vivo terá hoje 14 anos. A vela da esperança continua acesa à espera que o telefone toque com as 2 notícias possíveis. Mesmo que a notícia seja a pior…já seria bom para eu descansar e viver o luto. NOTAS: Todas as fotos que acompanham este texto são meramente ilustrativas. O nome sânscrito Ravi, significa "o Sol". O Dia Internacional das Crianças Desaparecidas é celebrado todos os anos no dia 25 de maio. Esta data foi escolhida porque a 25 de maio de 1979, Ethan Patz, criança de seis anos de idade que vivia em Nova Iorque, desapareceu e nunca mais foi encontrada. Nos anos seguintes, pais, familiares e amigos, reuniram-se na data do seu desaparecimento. Em 1983, o Presidente dos EUA, Ronald Reagan, decidiu dedicar este dia a todas as crianças desaparecidas e em 1986, o dia 25 de Maio adquire uma dimensão internacional. Por cá, a Polícia Judiciária (PJ) recebeu participações de mais de 1.100 menores em Portugal, em 2021. Destes menores desaparecidos, 129 tinham menos de 14 anos de idade e 976 menos de 18 anos.