Dia Mundial da Fotografia
Memória de um tempo parado Um fotógrafo é uma alma só Gosta das sombras e do silêncio, porque tudo tem a ver com memórias Uma constante partilha de sensibilidade que se cheira, e por sentimentos interiorizados, que quando transmitidos através de gestos se transformam em pétalas de flor, porque a vida é realmente fotossensível. Somos todos imagem que vai de 35mm a 120 e incentivamos o mais breve momento a ser perpetuado no tempo. A cortina do obturador de uma câmara é um tempo presente, que rapidamente passa a passado após ser acionada. É como uma tabela periódica da vida onde através de um processo químico se faz magia com revelador, fixador e banho de paragem. Histórias com Gente Dia Mundial da Fotografia João Paulo da Silva Barrinha que tem 59 anos e nasceu em Cantanhede, distrito de Coimbra, diz que um fotógrafo vê sempre simbolismos nas coisas, até porque uma fotografia transporta sempre uma ideia. Marcámos encontro num local, que por diversas razões tem muito em comum com a nossa história. O belo Parque Termal do Vale dos Cucos, que à primeira vista nos transporta para uma fotografia parada no tempo. João não vinha sozinho. Trazia consigo o seu “assistente” João Fixado, porque antigamente os fotógrafos colocavam uma gaiola com passarinhos ao lado da máquina e diziam: “Olha o passarinho!” para que os retratados não olhassem diretamente para eles. Após quase uma hora de conversa a palavra memória foi realmente a que mais utilizou. Falámos de projetos, de processos antigos como cianotipia e da sua vertente como formador que pretende levar a verdade sobre esta arte ao maior número de pessoas possível. Vamos lá começar uma verdadeira viagem no tempo “O projeto fotografia começou nos meus 18 anos. Após algumas peripécias tentei ser repórter fotográfico, mas sem sorte. Dediquei-me então a outras profissões, inclusivamente numa loja que nada tinha a ver com fotografia e rapidamente fiquei farto. Cheguei à conclusão que só sabia fazer fotografia”. A loja de que tomou conta começou a encher-se de dívidas e depressa chegou à falência. Sentiu um enorme alívio quando a conseguiu vender, dedicou-se de imediato à fotografia e nunca mais parou. “Fui para Tomar e fiz um curso superior de fotografia com licenciatura. Tinha tido alguma formação anteriormente no Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas (CENJOR) e também no ArCo - Centro de Arte e Comunicação Visual”. Foi então a partir de uma memória antiga que surgiu o projeto que desenvolve já há 10 anos. “Lembro-me de um senhor na praia de Santa Cruz, aí por volta dos meus 12 anos, com um cavalinho e uma máquina destas na praia. Achava aquilo muito curioso, principalmente o facto de ir buscar água ao mar no seu baldinho. Ele fazia-o e depois punha as fotografias dentro de água. E isso nunca mais me saiu da cabeça”. Mesmo após já ter experiência de laboratório e de revelar os seus próprios trabalhos, aquela memória nunca o abandonou. Foi já na faculdade que interpelou o seu professor de fotografia, José Soudo, sobre qual era o processo fotográfico que se revelava com água do mar. “Com cara de espanto disse-me: mas não existe nenhum! Onde é que viste isso? Expliquei-lhe então a história e ele respondeu-me: Mas isso não era revelar, mas sim lavar depois de revelar, porque ele devia ter as químicas dentro da câmara”. Esclarecidas as dúvidas, começou então mais a sério o seu projeto pessoal. Um projeto artístico. Queria recrear a memória do fotógrafo de Santa Cruz e a sua ideia original era fazer fotografia analógica na praia do Meco. Retratar nudistas com a sua câmara. Essa ideia foi posta de lado, mas não esquecida. “Como fiz o curso já tarde, a parte laboratorial e da fotografia química foi sempre com boas notas. Mas na parte dos computadores embora soubesse mexer e trabalhar bem, era na edição digital que fraquejava. Os meus colegas ganhavam-me sempre na rapidez. Utilizando uma metáfora, enquanto ligava o meu computador eles já estavam a terminar o trabalho”. João Barrinha tinha então receio de entrar no mercado de trabalho com este handicap. A rapidez a editar trabalhos, que lhe eram exigidos. O seu futuro na arte estava então decidido. Pelo gosto que tinha no analógico e com todas as ideias que o seu professor José Soudo lhe transmitira sobre a história da fotografia, juntou o útil ao agradável e começou a fortalecer este seu projeto. “Tentei adquirir uma câmara, mas estava em maus-estado e já muito velhinha. Depois pensei que se eles antigamente construíam as suas eu também sou capaz de construir a minha. Pus mãos à obra e fiz esta câmara. Não fiz apenas a câmara, mas também recriei uma espécie de personagem, porque esta não é uma câmara, que imite o passado, mas antes que se baseia no mesmo para fazer uma coisa contemporânea”. Criou então a própria história à volta do seu trabalho artístico em que deu à sua câmara o nome de A Fabulosa Máquina de Fazer Parar o Tempo, o que depois viria dar o mesmo nome ao seu projeto de fotografia, projeto que iniciou há 10 anos. O nome surge da ideia de pessoas de antigamente e das velhas feiras de bizarrias, como a mulher do bigode e do homem mais alto do mundo. Diz ter assumido um personagem de um feirante do século XIX. Perguntei ao João se há mais seriedade e lealdade na fotografia analógica. “Há garantidamente mais seriedade, não só pelo meu lado, mas também pelo lado do retratado. Tenho o prazer de fotografar, mas como este projeto passa por dar às pessoas, é-me muito importante a experiência de quem fica. Quem fica ali parado para fazer uma fotografia tão invulgar não vai esquecer, porque afinal até a forma de posar é diferente. Toda esta encenação e sendo uma câmara deste tipo é um momento que não esquecem, aliás o retrato serve para as pessoas não esquecerem”. Num momento mais descontraído João diz-me meio a brincar meio a sério, que as imagens não existem. “Se aproximarmos cada vez mais uma imagem num microscópio chegamos a um ponto em que apenas observamos grãos, não sendo propriamente uma imagem. Logo, a imagem só existe porque não a conseguimos visualizar corretamente, é um contrassenso. Há ainda a questão da fotografia documental onde há sempre algo que se documenta, nem que seja a preparação para se captar uma imagem. Qualquer coisa que seja. Logo, o presente é imediatamente quebrado após fazer uma fotografia passando logo de seguida a ser passado. “Às vezes há pessoas que questionam porque é que a fotografia se vê ao contrário. Explico-lhes sempre que o nosso olho também vê ao contrário. É uma questão que gosto de explorar principalmente com crianças. A pergunta que surge logo de seguida é então porque é que o mundo está direito? Precisamente, porque o nosso cérebro compõe, ou seja a nossa realidade é uma realidade composta”. Falámos também de consciência e do mundo ser muito mais subjetivo, do que aquilo que pensamos. “No fundo, seríamos certamente menos arrogantes”. Quase no final da conversa, João Barrinha entrega ao seu retratado a imagem já passada de negativo para positivo. É um momento solene onde de ambos os lados se trocam sorrisos, admiração e a certeza de que se fez aqui algo bastante diferente daquilo a que estamos habituados. A passagem de memórias entre um personagem de um feirante do século XIX, um retratado e uma Fabulosa Máquina de Fazer Parar o Tempo. O retrato serve para a pessoas não esquecerem. No fundo a base da fotografia é a memória. A realidade é uma composição feita por nós e por vezes a fronteira entre o que é real e a imaginação é uma linha muito ténue. E nunca nos esqueçamos que a vida é fotossensível sempre à espera que a revelemos. “No âmbito do Dia Mundial da Fotografia proponho que procurem estudar e entender o que é a fotografia e todo esse processo indo à memória da fotografia e fotografem. Fotografem muito”. Um fotógrafo vê sempre simbolismos nas coisas, até porque uma fotografia transporta sempre uma ideia. João Barrinha Um agradecimento especial ao Parque Termal do Vale dos Cucos, em Torres Vedras, pela cedência do espaço para que fosse possível contar esta história da melhor forma. © Carlos Almeida