Artista plástica Fátima Ramos
Rubrica "Histórias Com Gente" Casa D’Artes Esta é uma história de amor. Sobretudo de amor. Francisco José Moura Araújo Beato, 67 anos, natural de Idanha-a-Nova, confessa-me que após o falecimento da sua mulher a casa continua a cheirar a arte. A artista plástica, Maria de Fátima da Cruz Ramos Beato, faleceu com 63 anos, e era natural de Aljezur. Era formada em contabilidade e finanças, frequentou cursos de pintura em porcelana, desenho e história de arte. Participou em diversas exposições coletivas e está representada em coleções públicas e privadas, no país e no estrangeiro. Francisco, conheceu, Fátima, durante um baile de Carnaval, mesmo antes de embarcar para o antigo Ultramar. “Recordo-me que estávamos no baile e nem ela nem eu tínhamos par. Começamos a dançar e a conversar. Criou-se logo ali uma amizade e empatia e acabou por ser a minha madrinha de guerra. Depois de regressar do antigo Ultramar pedi a uma vizinha para me facultar o contacto dela. Como também ela não o tinha recorri ao endereço da correspondência que era de uma sua colega de trabalho”. Naquela altura era complicado os pais deixarem as filhas trocar correspondência com rapazes e por isso que Fátima dava sempre a morada da casa de uma amiga e colega de trabalho. Começaram a sair e rapidamente a amizade foi transformada em amor. Casaram sem muita demora. Maria de Fátima Beato, era tesoureira na empresa Johnson. O seu amor à arte surgiu já numa das fases da doença. Após descobrir o seu problema de saúde, durante um passeio pela Verdizela, entraram numa galeria de arte que dava aulas de pintura. Fátima começou a frequentar as aulas de pintura, o que a ajudou muito no combate à doença. Começou por pintar peças de loiça e só depois passaria a sua arte para a tela. Foi proposta para integrar a Imargem - Associação de Artistas Plásticos do Concelho de Almada. Já com cerca de 50 anos resolveu ir para a capital frequentar a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa onde se formou em história de arte. Todo este caminho pelas artes foi acompanhado por uma amiga de longa data. Após um reencontro começaram a partilhar este percurso e nunca mais se separaram. Margarida Maria Branco Cortês, 66 anos, terá conhecido a sua amiga Fátima nos tempos de escola. “Conhecemo-nos na escola das Cavaquinhas, no Seixal, mas no final desse ano letivo a Fátima saiu e perdemos um pouco o contacto. O reencontro foi precisamente nas aulas de pintura da Maria Dâmaso”. Tinham-se passado tantos anos que quando se cruzaram não se reconheceram. Foi Francisco Beato, que reconheceu Margarida quando foi buscar a sua mulher ao atelier. “Ela estava completamente diferente dos tempos de escola. Começamos a conviver mais e a participar em muitas coisas juntas. Frequentámos cursos bem como exposições em conjunto. Pintávamos juntas até na cozinha e trocávamos sempre muitas ideias. Já na fase da doença da Fátima, tentávamos sempre não falar sobre o assunto. Conversávamos como se de nada se tratasse e só abordava o assunto quando via que ela estava mesmo a precisar de falar. De desabafar. Senti muita pena do desfecho, mas de certa forma era já um bocado anunciado, porque foram muitos anos de combate”. Voltamos à conversa com Araújo Beato e pergunto-lhe se há algum objeto de que goste mais e se todos falam a mesma linguagem. “Eu acho que não há nenhum preferido. Todos os objetos que a minha mulher pintou me dizem muito. A Fátima pintava consoante a fase da sua doença. Mudava cores e formas conforme a doença se ia agravando e isso é notório mesmo para quem esteja de fora”. Creio que a artista plástica punha um pouco da sua doença na tela. É visível a transição da Natureza, retratada com árvores e animais, para a transmutação das origens, bem como das raízes e seiva para as veias, sangue e dermo visível em camadas. Há telas onde se veem janelas que retratam um “horizonte de esperança ou até mesmo uma luz ao fundo do túnel. Eram já pinturas viscerais”, confessa-me Margarida Cortês, amiga e artista plástica. Existe já uma data marcada para a inauguração de uma exposição de obras da pintora, Maria de Fátima Beato, que terá a curadoria da sua amiga, Margarida Cortês, e que estará patente de 1 a 19 de abril, na galeria de arte Imargem - Associação de Artistas Plásticos do Concelho de Almada. Araújo Beato, quer também fazer um livro (catálogo) com fotos de alguns quadros e loiças pintados pela artista e com textos e citações de amigos e visitantes de suas exposições. “A exposição foi pensada para mostrar às pessoas as obras pintadas pela minha mulher. Dar a conhecer um pouco mais da sua pintura. E em relação ao livro foi pensado para deixar um legado à minha neta, um legado sobre as obras da avó. Ela tinha apenas 3 anos quando a avó faleceu. Por outro lado, é também uma forma de a homenagear a Fátima enquanto mulher e artista”. Há ainda a possibilidade de um amigo de Araújo Beato fazer uma coleção de 6 pacotes de açúcar com imagens de obras da pintora. Depois de várias cirurgias e após uma luta de 19 anos o medicamento que Fátima tomava deixou de fazer efeito e no dia 23 de novembro de 2021 a arte ficou mais pobre. Hoje, a sua amiga, Margarida Cortês, diz que se perdeu uma pessoa com um “trato social muito interessante, daquelas que fazem realmente a diferença” e que “pintar sozinha não tem graça”. Já quase no final da entrevista, Araújo Beato confessa-me que o 43.º ano de comunhão entre os dois foi celebrado a 27 de agosto de 2021, e que a esposa era uma lutadora. Adorava cozinhar, gostava de se apresentar bem e era bastante vaidosa na apresentação dos seus trabalhos. Emocionado, faz-me saber que a mulher tinha um grande amor pelo filho e pela neta de apenas 3 anos. A última vez que os seus trabalhos foram exibidos numa exposição foi na Torre da Marinha, em junho de 2021. Há uma obra com cores luminosas de esperança, que continua em cima do cavalete…à espera de ser terminada. A casa continua a cheirar a arte, até porque em cada pincelada aplicada numa obra sua correspondia um imenso palco de vida. © Carlos Almeida 2022