Silêncio…hoje é Dia Mundial do Fado
Entre Cordas Fui à procura de vozes e de instrumentalização. Tentei reunir fadistas da última geração e da “velha guarda”, os guardiões do fado tradicional. Não foi tarefa fácil, porque os fadistas descansam de dia e à chegada do crepúsculo partem para mais uma noite de trabalho, porque para eles a arte vive de noite. Levei no saco quatro perguntas para todos: O que é o fado, como entraram na arte, que impacto tem nas suas vidas e qual seria o fado que interpretariam pela última vez. O fado, esse dom maior e musicado a partir de um palco de todos, que pode ser também a comunhão perfeita entre os tons musicais e as vozes sem fim. O palco pode ser escutado num coliseu ou mesmo em chão gélido de uma tasca qualquer, porque para mim não existe nem ouro nem ferro no fado. É todo feito do mesmo “metal”. É um casamento perfeito ou até mesmo um bailado sentimental entre as ruelas de um bairro, a tristeza talhada de um povo e o frio que chega ao entardecer na voz de um rio. Mas, vamos aos fados! O chefe de sala dá a ordem para que as luzes baixem de intensidade, os talheres poisam sobre os pratos e as conversas calam-se. É assim que se comemora a lealdade ao Fado, esse pecado maior, ditado entre a guitarra portuguesa, a viola, o baixo e a voz, que se deita sobre o xaile. Na sala carregada de fumo e de cigarros esquecidos nos cinzeiros, a luz começa a ganhar vida de novo. Há um silêncio pausado de medo. O receio da música ainda não ter chegado ao fim é grande e ninguém quer bater as primeiras palmas. Após um dedilhado entrelaçado entre dedos finos, eis que a voz se cala. A vénia fadista e o agradecimento imediato aos seus músicos marca o fim do fado. A sala enche-se finalmente de aplausos e de palavras de apreço ao trabalho de todos os artistas. 1/10 - Vítor Manuel Almeida Miranda, nascido em 1964 no bairro da Urmeira. “O fado é uma coisa muito mágica, cantado com o coração, corpo e alma”. A sua mãe, mesmo que nunca se tenha profissionalizado no fado sempre cantou em coletividades de cultura e recreio, e desde muito pequeno que Vítor Miranda, acompanhava os seus pais para as tardes e noites de boémias. “Como se costuma dizer, a veia de fadista já estava comigo, e é desde daí que começa a nascer o “bichinho”. Comecei a ouvir fado com 4 anos e aos 6 cantava as minhas primeiras músicas”. Foi numa coletividade na Damaia, que deu os seus primeiros passos no fado e mais tarde no seu bairro. Havia também a adega típica do Patrício em Sacavém, que era uma casa que a família frequentava mais ao final da noite e ponto de encontro das grandes vozes consagradas do fado dessa altura. “Apareciam sempre o Fernando Maurício, Gabino Ferreira e Júlio Peres, entre outros, e grandes músicos tais como os residentes Torcato Lopes e Vítor Lourenço, mas depois apareciam também noite dentro o Jorge Fontes e o Manuel Martins, vindos de outras noites de fado”. Fernando, o dono da casa, devido à sua altura, punha-o em cima da mesa para que a assistência o pudesse ver a cantar. Vítor Miranda, aos 8 anos gravava o seu primeiro disco. O impacto que o fado tem na sua vida é enorme, porque o fadista por onde passe é sempre muito bem recebido. A paixão que continua a sentir pelo fado é crescente e imparável. “Sou uma pessoa que gosta de receber, mas também gosto muito de dar”. O seu último tema seria o “Fado da Meia Laranja” de José Luís Gordo e música de Joaquim Campos. “É um tema com uma mensagem muito forte e por onde quer que passe é o fado que o povo me pede sempre para cantar. É o meu hino”. 2/10 - Acácio Pereira Barbosa, tem 33 anos e vem da freguesia da Sé em Faro. Considera que responder acerca do que é o fado é algo muito difícil de explicar, mas muito fácil de sentir. “O fado é algo que não se explica, sente-se apenas. É sentimento e paixão. É como um conjunto de sentimentos que podemos chamar de bons ou maus, bem como as nossas histórias e as dos outros. É um pedaço das histórias de todos os fadistas, de quem o toca e de quem o canta”. No fundo o fado é vida, a nossa vida, esta que vivemos. E é também a vida contada em português. Vasco Rafael e Lenita Gentil eram amigos e clientes do restaurante dos seus avós no Algarve. Fernando Tordo, também deixou muitas letras escritas nos toalhetes de mesa onde a sua avó era cozinheira. “Quando tinha apenas 4 anos, o Vasco Rafael, deixou uma guitarra portuguesa de cor verde, que tinha o tampo meio em papel, ao meu avô, essa guitarra mais tarde viria a ficar para mim. Cheguei a andar com o instrumento a fazer de vassoura. Dos 9 aos 26 anos toquei viola sempre com o fado e música tradicional presentes na minha vida”. Acácio chegou a ser membro da banda de música tradicional portuguesa, Criatura. “A partir dos 26 deixei a aeronáutica para trás e comecei realmente a tocar guitarra portuguesa. Vim para Lisboa com amigos ouvir os velhotes tocarem nas tascas. Trouxe 20 paus de troco da viagem de autocarro, um conjunto de mágoas na mala e uma guitarra com 114 anos”. Acácio, ainda hoje tem essa guitarra e até tem nome, “Aurora”. “Sou uma pessoa muito intensa, não fosse eu tocador de guitarra portuguesa e o fado tem a capacidade de amplificar e intensificar tudo aquilo que sinto”. Conta-me que fado é acolhimento e também compaixão e tem a capacidade de nos levar mais fundo e mais alto de acordo com o que estejamos a sentir. É tão intenso, que por vezes o músico sente a necessidade de fugir dele (fado), porque na realidade a boémia pode ser muito viciante e por isso tenta sempre balancear todas essas coisas na sua vida. O seu tema preferido seria sem sombra de dúvida o Fado José António (sextilhas), “Disse-te Adeus e Morri”. É um tema que relaciona a morte com a passagem das horas, que é uma invenção nossa e torna tudo muito mais clarificado, confessa-me. 3/10 - Nuno Miguel das Neves Martins Lourenço, tem 50 anos e é de Cascais. Desde os seus 14 anos que foi músico de bandas de rock, blues, heavy metal e até de temas originais, mas nunca lhe passou pela cabeça tocar fado. Apesar de a sua mãe ser fã incondicional de Amália Rodrigues e o seu avô de Hermínia Silva, o fado nunca lhe tocou na alma. “A minha vida dá uma volta após a minha separação, através de uma amiga e antiga vocalista de uma das minhas bandas, que me falou numa escola de fado na Mouraria. Comecei a frequentar aulas em 2014 e nunca mais parei de tocar fado até hoje. Já lá vão quase 10 anos”. Após as primeiras aulas, o baixo Nuno Lourenço, terá sentido algo de muito especial na alma. A parte mais emocional é a de tocar a mesma melodia para centenas de fadistas, mas sempre de forma diferente. “Essa parte fascinou-me”, conta-me. “O fado é uma música portuguesa, que nos está na alma. Tocar com outros músicos e fadistas diferentes mesmo que pela primeira vez nunca se torna uma coisa fria, porque o sentimento é sempre o mesmo”. O fado fez com que muita coisa mudasse na sua vida. A sua forma de estar e lidar com pessoas, e depois a parte poética. As letras de fado são quase todas compostas por poemas de histórias vividas, reais. “Há poemas com que te identificas, porque já os viveste”. O viola baixo, Nuno, escolheria para os seus últimos acordes “Marcha de Pedro Rodrigues”, precisamente pela sua melodia. São cantados poemas em quadras, quintilhas, sextilhas e consegue-se estilar nunca perdendo o tempo musical. 4/10 - Maria da Conceição Ribeiro Gomes, nascida em 1959 no bairro de Alcântara. “O fado é um estado de alma. Quando canto, desabafo a vida”. A fadista conta-me que o fado entrou na sua vida praticamente desde que nasceu. Lançou-se nas tabernas com apenas 11 anos. O seu Mestre e grande fadista terá sido o irmão Armando Ribeiro, infelizmente já falecido. “O meu irmão cantava como ninguém. “Pegava” na Marina Mota e em mim e levava-nos para as tascas. Depois mais tarde a Marina seguiu a vida dela e eu a minha”. A música tem um enorme impacto na vida de Conceição. Para a fadista o fado é alegria, tristeza, bem-estar e no final acaba por ser tudo fado. “Até eu a falar sou fado. Já fiz muita coisa na vida, mas acabei a fazer o que realmente gosto”, diz-me a sorrir. Cantou nas melhores casas de fado e aos 19 anos adquire a carteira profissional e hoje com 64 anos de idade ainda continua a cantar com a mesma paixão. O fado “Noite Cerrada” de António de Sousa Freitas e Nóbrega Sousa, seria o último fado da sua vida. “Isso não se faz, Carlos”, sussurra-me. Emocionada, confessa-me que a escolha do fado tem a ver com a força do poema que a canção tem, e a sua última frase nesta entrevista foi, “Cantaria este último fado apenas para se lembrarem de mim”. 5/10 - Tiago Miguel Rodeia Correia, nasceu há 27 anos no Barreiro. O fadista sempre teve uma herança de música tradicional portuguesa, graças aos seus avós maternos. “A minha avó cantava nos ranchos de cantadeiras no Alentejo. Já o meu avô foi trompetista de banda filarmónica no Alentejo, sempre teve uma admiração especial pelo fadista Fernando Farinha. E quando ouvi Fernando Maurício pela primeira vez senti algo especial. Soube-me a casa e esse sabor fez com que começasse a ouvir esse e outros grandes fadistas da época, como Alfredo marceneiro e Carlos Ramos, que me marcaram muito até hoje”. Tiago Correia, tinha nessa altura 12 anos. Começou então a identificar-se com aquela tão especial forma de cantar e de se dizer as palavras em bom português. “A resposta à pergunta do que é o fado, ele vai aparecendo ao longo da vida e depende muito das circunstâncias em que cada um de nós vive, porque a maneira que entendo o fado aos 20 anos, não será certamente a mesma que entenderei aos 50. Para além disso o fado cresce com o fadista e com a própria pessoa”. O músico gosta de dar definição às coisas. Uma vez escreveu que o fado era o canto da alma imperfeita, porque nós ao sermos seres imperfeitos iremos sempre repescar a forma de estarmos na vida através do fado. “Posso responder-te que o fado é a Amália Rodrigues ou o Fernando Farinha ou até o Maurício. Ou seja, pode ser uma personagem ou até mesmo a nossa própria vida. Tem muitas traduções, mas nunca uma tradução absoluta”. Concorda ainda que a nossa vida também é um fado, porque “mesmo que não sejamos fadistas temos o fado da vida, tal como dizia Camões”. O fado vive lado a lado com o Tiago e ele procura sempre ter uma grande responsabilidade nas raízes do fado. “Tento sempre ter o braço dado com o passado, mas continuar sempre o meu caminho para o futuro. Vivo o fado com muita intensidade”. Se fosse o último, o fado eleito seria o “rei de todos os fados”, o “Fado Menor”. Já o poema escolhido foi “Destino Marcado”, com letra de Fernando Farinha, porque “nele está em termos poéticos o significado e interpretação do que é o fado na sua plenitude”. 6/10 - Ana Catarina Dionísio Tavares, tem 21 anos e nasceu em Queluz. “O fado entra-me na vida através dos meus avós maternos, que foram fadistas profissionais até aos 40 anos”. Um acidente de viação terá afastado os avós da vida artística para sempre. Já a sua mãe, para além de nunca ter cantado, foi sempre uma grande frequentadora da noite fadista. “A minha mãe sempre me disse: na minha barriga já tu ouvias fado”, ou seja, desde pequenita, que o fado mora em mim, tendo começado a cantar com 11 anos”, conta-me com ar feliz e de sorriso na cara. “O fado é realmente uma das coisas mais importantes da minha vida, sendo tudo aquilo que vivo, que faço e que sinto”. Cantar fado é a concretização de um sonho que tenho desde miúda e vou continuar a fazê-lo até poder. Já em relação ao último fado que cantava na vida seria sem dúvida “Pedaços de Vida” de Maria Valejo. Escutou-o pela primeira vez na Rádio Amália e sentiu de imediato uma ligação à melodia. “Ouvi-o pela primeira vez e pareceu-me que já o conhecia há muitos anos”. 7/10 - Rosa Borges Jacinto, 52 anos, nasceu em Sintra. O fado para mim é um modo de vida, um destino e um condão. A causadora da entrada do fado na sua vida foi Amália Rodrigues. “Fui a casa de Amália, pela primeira vez, tinha apenas 15 anos. Cheguei a privar com ela, mas infelizmente sem nunca ter cantado a seu lado”. Conta-me ainda que o fado tem um enorme impacto na sua vida e que “o impacto é sentimental e pessoal. É fado, sou eu”. “Foi Deus”, da autoria de Alberto Fialho Janes, seria o último fado da sua vida. 8/10 - Ana Luísa da Rocha Prego Janes, 41 anos, nasceu no Monte da Caparica. Há 38 anos, que os pais de Ana Luísa são proprietários de um restaurante onde sempre se ouviu fado. “Para além de ouvir fado desde muito nova, o meu pai sempre cantou e pertenceu a um grupo de Reguengos de Monsaraz, que se chamava Trio Jucista. A minha paixão vem daí”. Para Ana, o fado é um modo de vida e também uma espécie de combustível, que diariamente a ajuda a balancear a sua vida agitada. “O fado faz-me mesmo muita falta e para além de dar continuidade ao projeto dos meus pais fazendo noites de fado aqui no restaurante, vou também aos fados a outros locais. Chego a ir sozinha”. Quando lhe falo de fado noto-lhe sempre um brilho intenso nos olhos. Fala-me em tom emocionado, que cantar é um sentimento transversal a todos os fadistas e músicos, e que nunca nenhum sabe explicar tal sensação. “Por vezes choro imenso quando ouço outros fadistas e o lindíssimo trinar de uma guitarra. Sinto o fado de uma forma mesmo muito profunda”, confessa-me. O tema escolhido pela Ana, para ser interpretado pela última vez, seria o poema de Florbela Espanca, “As Almas dos Poetas…não as entende ninguém, são almas de violetas, que são poetas também”. “O meu pai é um poeta e sinto que por vezes são incompreendidos, o poema de Florbela faz-me muito sentido. Não sou poetisa, mas sinto que tenho um pouco dessa alma. A poetisa foi uma mulher muito sofredora. Não que eu o seja, mas tenho também a minha profundidade apesar de ser uma mulher muito alegre”. O seu respeito pelas Almas dos Poetas é tão grande, que tem tatuado um excerto desse mesmo poema na sua perna. 9/10 - José Luciano dos Santos Matos, nasceu em 1955 no Bairro da Madragoa. O viola, José Matos, começa por dizer-me que o fado é a forma que encontramos para nos exprimirmos. “É através do fado, que confessamos o que nos vais na alma bem como tudo o que se passa na sociedade. É também um contador de tempos antigo, ou seja, um marco histórico do povo português, que por meio de música solta sentimentos”. Para além de ser desde sempre um amante do fado, é apenas aos 52 anos, através de um amigo guitarrista, que começa a sua carreira musical. Já tocou em grandes salas, acompanhado por músicos de excelência e diz que tem sido um homem de sorte por gostarem sempre do seu acompanhamento à viola e frisa que o grande trunfo é a humildade. “Sou casado com uma fadista e hoje não vivo sem fado. Já estou reformado da eletromecânica, mas a música continua a ser uma companheira de vida. Quando não tenho fado não me sinto bem”. O seu último fado seria um fado da autoria de Carlos do Carmo e sempre com um poema que lhe dissesse alguma coisa relacionada com a sua mulher, até porque o fado também é amor e o nosso engrandece muito através do fado. 10/10 - Helena Cecília Jesus de Sousa Corista, tem 50 anos e nasceu no bairro de Alcântara. “O fado para mim é uma espécie de medicação, porque se estou triste e em baixo, quando começo a cantar fico logo diferente. Vem tudo cá para fora. É muito sentimental”. A sua mãe é a grande “causadora” da sua entrada para o mundo do fado. Tinha muitos discos e ouvia-os com bastante regularidade e por isso na sua casa morava o fado. Já o seu pai era da Madragoa, um dos bairros vizinhos de Alcântara e foi num belo dia durante uma brincadeira com fadistas já conhecidos na praça, que a convidaram para cantar. “Claro que o meu pai não gostou da ideia, porque não queria que eu entrasse no mundo do fado. Mas ganhei-lhe o gosto e comecei a entrar no “karaoke” de fado, na Cova do Vapor”. Uns tempos depois e sem o seu conhecimento, um amigo inscreveu-a para na Rádio Amália e começou a frequentar a Escola de Fado em Santa Iria da Azoia. “Correu bem, pediram-me para ir tirar os tons, comecei a entrar nas tertúlias fadistas e nunca mais parei”. O fado de António Rocha e de Armando Machado e Maria Rita – “Andei à tua procura”, seria o último fado da sua vida.