Luz de Mar
Luz de Mar Maria Goretti Medeiros de Oliveira, 44 anos, natural de São José, Ilha de São Miguel, Açores, que de animadora na área da saúde se lançou na iluminação dos mares de Portugal, afirma hoje que no mar só navega quem o consegue compreender. Foi há 18 anos, mais precisamente no dia 19 de abril de 2004, que a aventura começou na sua ilha de nascença. Foi uma das três primeiras mulheres, todas açorianas, a concluir o primeiro curso de Faroleiro em Portugal. Hoje integra a Autoridade Marítima Nacional que pertence à Marinha Portuguesa. “Venho de uma família com história militar, mas penso que não terá sido isso que despertou o “bichinho” em mim. Trabalhava como animadora na área da saúde, na Ilha de São Miguel, mas sempre desejei ligar-me às Forças Armadas. Pesquisei e tive conhecimento que estava aberto o concurso ao curso de Faroleiro. Concorri e fiquei aprovada logo à primeira”. Maria Goretti, frequentou o curso de Faroleiro, que durou sensivelmente oito meses, na Direção de Faróis, em Paço de Arcos. Após o curso foi destacada para estagiar durante um ano no Farol de Albernaz, na Ilha das Flores, em Ponta Delgada, mas acabaria por ficar durante três anos a cumprir serviço. “O Albernaz é um farol muito difícil e exigente a nível das condições climatéricas e na questão da energia, porque na altura ainda era movida a gerador, o que exigia muito mais trabalho e cuidados. Fui das primeiras mulheres a ter um conhecimento mais aprofundado de mecânica. Apenas em 2009 e na altura em que saí é que a eletricidade chegou ao farol”. Mas a aventura pelas torres de luz apenas tinha começado. Mais tarde foi destacada para o Farol de Gonçalo Velho, em Santa Maria, onde permaneceu por mais cinco anos. Após o serviço nos Açores, a 2.º Faroleiro voltou a concorrer, mas desta vez para cumprir serviço no continente. Conseguiu, e está integrada no Núcleo Museológico da Direção de Faróis, em Paço de Arcos, desde 2012. “O facto de deixar de exercer a função dentro de um farol e passar a desempenhá-la dentro de um núcleo museológico não foi má, porque, para além de amar a profissão de faroleiro, também gosto de partilhar com o visitante a história dos faróis portugueses. Enquanto faroleiros temos a obrigação de saber a história do farol onde estamos destacados”. Mas a 2.º Faroleiro não está apenas ligada à parte museológica. Tem outras competências. Para além das competências no museu, está também ligada à manutenção do equipamento que se encontra no espaço e ao restauro de peças provenientes de farolins, faróis e boias da costa portuguesa que apresentem desgaste do tempo ou mesmo às que são substituídas por material mais moderno. Existem também manutenções de material fora da sua unidade. Tive a hipótese de a acompanhar numa saída ao Museu do Combatente, no Forte do Bom Sucesso, onde verificou o estado de uma lanterna que permanece no interior do museu e procedeu à limpeza geral. Há ainda restauro de peças feito nos próprios faróis, porque hoje há um programa que visa fazer pequenos museus em cada um deles. A tecnologia evolui, mas as peças de origem após o restauro ficam no espaço para que possam ser visitáveis, salvaguardando assim a história local. Questiono-a se há dificuldade entre coordenar família e cargo militar. “Admito que a relação entre vida militar e família é sempre difícil, quer no caso dos camaradas da Marinha quando estão embarcados, quer no caso dos faroleiros, que nunca têm familiares por perto. Se se trata de um casal é fundamental haver uma relação forte e sólida para que se consiga aguentar a solidão. Em termos profissionais tenho de admitir que é fascinante. Quer nos navios quer nos faróis, há sempre uma grande proximidade com o mar e isso é muito gratificante”. Vamos para outras viagens. Os navegadores chegam a passar vários meses em alto mar sem terem qualquer contacto visual que vá para além do oceano. O dia de festa é precisamente o dia em que o capitão avista a luz de um farol, o que expressa nada mais nada menos do que a célebre frase “terra à vista”. Pode até não ser o porto de destino, mas para ter essa certeza há que fazer contas, pois afinal os cálculos matemáticos e a navegação estiveram sempre muito ligados. A 2.º Faroleiro Goretti, confessa-me que estar ao leme de um farol é estar sempre na linha da frente na proteção de alguém. “Há sempre muita responsabilidade nesta profissão. Por exemplo temos que verificar constantemente se existe alguma avaria na sinalização. Há fatores que podem colocar em risco o bom funcionamento de um farol, tais como as situações climatéricas. É muito perigoso para o navegador não ter a luz guia vinda de terra”. Os procedimentos em caso de avarias nos faróis portugueses são levados muito a sério e carecem de um processo rápido e funcional. O primeiro passo após detetar a anomalia é verificar rapidamente se se consegue resolver a avaria no local. Se este primeiro passo falhar segue-se o contacto para o exterior. Há sempre alguém de serviço para receber esses contactos vindos de qualquer farol. Há também a comunicação para o chefe do faroleiro e este reportará a uma patente mais elevada. Segue-se então o contacto para o Instituto Hidrográfico, a quem caberá a transmissão das coordenadas do referido farol para todos os navegadores. Logo que a situação seja regularizada o Instituto enviará outra mensagem para dar conhecimento à navegação de que a situação já se encontra resolvida. Vamos às aventuras passadas em faróis A Ilha das Flores é conhecida pelos seus ventos fortes que criam perigos constantes na via marítima e aérea. A trovoada e os relâmpagos causam muitos sustos e “dores de cabeça”. “Tinha 26 anos e estava de serviço no Farol de Albernaz. Por volta das 3 horas da madrugada caiu um raio precisamente dentro das escadas e bem na lanterna do farol. O equipamento técnico foi todo atingido. As cartas de características, cartas de lâmpadas, telefone, micro switch e restante material ficaram esturricados. Parecia mesmo que tinha caído ali uma bomba. Por sorte tinha o meu telemóvel. Pus-me em cima de um banco junto a uma janela para conseguir ter rede e foi com ele que pedi ajuda aos meus camaradas. De imediato pusemos em prática um plano B, que consiste em fazer uma ligação direta, o que de qualquer maneira foi difícil porque não havia condições. Até a situação estar regularizada tive que fazer manualmente todo o processo de colocar o farol em funcionamento. Tive ainda uma outra aventura com a passagem de um furação no Farol de Gonçalo Velho, em Santa Maria, em que fui atirada contra a parede pela força do vento. Uma força inacreditável. A sorte foi que o furacão passou precisamente ao lado do farol e não foi tão grave como nas Flores. Danificou apenas as torres de transmissão deixando assim o farol sem contacto para o exterior”. Há faróis em locais inóspitos que continuam a manter os seus fiéis faroleiros bem longe dos corações de quem amam. O Farol Duque de Bragança, nas Berlengas, com serviços semanais, consegue ser solitário até que o mar os deixe remar para os seus. As condições climatéricas em certas alturas do ano são péssimas tornando a navegabilidade extremamente perigosa deixando os faroleiros retidos na ilha até que haja condições para serem recolhidos. A luz que ilumina a costa portuguesa começou com uma simples fogueira. “As fogueiras eram acesas nas zonas altas pelas mulheres dos pescadores quando estes saíam para o mar, era desta forma que lhes indicavam o caminho de volta de forma segura. Depois das fogueiras seguiu-se a incandescência a petróleo e depois o gás acetileno”, conta-me a militar. O primeiro farol a nível mundial foi construído na Ilha de Faros, em Alexandria e tinha entre 120 e 137 metros de altura. Era uma das sete maravilhas do mundo antigo e por muitos séculos foi uma das estruturas mais altas no mundo. O termo farol vem precisamente do nome Faros. Em Portugal o farol mais alto é o de Aveiro, com 62 metros de altura. Hoje, os portugueses estão no “topo na tecnologia a nível da sinalização marítima”. Já quase no final da nossa conversa a 2.º Faroleiro conta-me que “o mar transmite controlo, é inexplicável, e sempre um sentimento verdadeiro. Tão verdadeiro, que muitas vezes o ser humano não o consegue transmitir, mas o mar consegue, porque o mar nunca fala de forma igual e tem sempre conversas novas em dias diferentes. Quando estamos num farol conseguimos ler muito e até escrevi alguns poemas que ainda hoje guardo religiosamente, mas nunca os mostrei a ninguém.” Para um navegador, vislumbrar a luz de um farol é a mesma coisa que conseguir ver a alma da terra. Além de todo o avanço tecnológico os faróis continuam a ser uma ferramenta essencial para as boas práticas da navegação. Quanto aos guardiões da luz, nem toda a gente tem o privilégio de adormecer ao sabor das ondas e acordar no berço do mar. Também nem todos têm a honra de ver o sol a nascer e observar pores do sol fantásticos. É mágico, mas ser-se faroleiro é ser-se mágico. Já na despedida, a minha convidada confessa-me que gostava de ser a luz do mar, porque se um dia o farol se apagar o navegador pode encalhar.